Blog dos participantes da Oficina Crônicas: entrevistas com o cotidiano do Setor de Literatura da Fundação Cultural de Curitiba - 2010.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Memórias (ou À Casa de Minha Infância)


Meus pais estão vendendo a casa. A casa de minha infância. Mas como?! Se lá ainda estou escondida atrás da porta esperando a chegada de papai do trabalho; ainda posso ouvir os latidos brincalhões de Pink – que há anos já alegra o dito céu dos cãezinhos -; rir e correr sem pressa com minhas irmãzinhas mais novas; sujar-me de terra úmida de orvalho.
Eles estão vendendo a casa. Precisam respirar novos ares, vizinhar novos vizinhos, habitar novos espaços. Mas permaneço ali, no quintal, com as outras duas. Sim, elas também estão ali ainda. Pequenas. Uma bem magrinha. Outra bem bochechuda. Brincando comigo. Saltitantes, sorridentes, as três. Sob o olhar doce de nossos pais, jovens, encostados ao muro daquela casa.
Dizem que vão demolir. Demolir nossos brinquedos jogados pela calçada; as ameixas amarelas; os abacates cremosos. Vão demolir nossos namoradinhos batendo palmas em frente ao portão; nossos sonhos flutuantes pelo ar; a chegada ofegante do colégio; o fazer do dever de casa sobre a mesinha da sala; a vinda da catequese.
Dizem que vão demolir a casa. Solto lágrimas e derramo gargalhadas. Demolir como?! Se estamos todos ali, como na infância, como sempre. Eu, elas, pai, mãe, Pink. Inconscientemente felizes.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Estudor (Opus 18)

Sabe aquele caderno em espiral é mentiroso, mas o caderno grampeado é verdadeiro.
Os bloquinhos de anotações são depósitos de ilusões, e o marca-texto é provocação.
A borracha apaga pecados, e o grafite sempre em dúvida, é indeciso. O lápis de cor faz teatro, enquanto o guache enfeita os desejos. Papel almaço resume histórias, o editor de texto salva da sedução. Planilha de cálculo faz as contas dos beijos, e os olhos fazem as vezes do coração.
Livro é suporte do monitor que escraviza, e a impressora já está bipolar. O lixo é boa companhia para os erros do crescimento, mas o telefone é fofoqueiro, escandaloso.
Régua cansada se entorta, e a caneta seca, sem tesão.
Cadeira conforta as nádegas surradas com suor pelo medo de ficar com zero.
Os armários guardam notícias em pastas fruta-cor, e caixas pretas não se revelam.
Pincel atômico vazou de tanto rir, pelo calendário que desmaiou.
E assim, a vida fugiu do compromisso da dor.
 

Sympósion em comédia (Opus 17)

Muito fácil viver quando se tem o que beber, e se este líquido for o vinho o caminho torna-se prazer. Pretensão? Sim, pois o vinho dilata o tempo e asfalta a estrada.
Antigamente e nos dias de hoje este líquido precioso sempre é o combustível para alimentar conversas e amizades. O amigo Plat, melhor Platão, fazia boas reuniões em que as conversas eram capazes de distrair o tempo ali na Grécia Antiga. Tenho saudades das apresentações com músicas e danças feitas por escravas endiabradas (elas não bebiam). Coisa de arromba, da hora.
O vinho é a prova cabal que o tempo é contínuo canal de ligação entre a realidade visual e os sentimentos. O vinho leva a viver em quatro dimensões.
Reuniões ou encontros, seja lá o que for, são o culto as virtudes quando banhadas pelo vinho. Mas nem só virtude o vinho revela, tem as mais ridículas atitudes.
Tudo no inicio vem com carga formal de comportamento, mas aos poucos, um gole após o outro, o interior se expõe. A alma se revela límpida e cristalina, e tudo começa com sorriso de cumprimento.
Uma rodada na taça e os estágios de evolução vão se formando em cada um. O calor vai se espalhando pelo corpo, e quando menos se espera a face fica na cor de vinho rose. Aí, não se pode mais precisar quando às tontas atitudes começam. Neste momento fique atento, irá perceber vozes maiores nos cantos do encontro.
O sorriso é sempre o azeite de oliva de toda esta salada que se desencadeia.
Não existe o momento certo de parada, a maioria perde do ponto descida.
Teorias se formam por chatos que são soltos; olhos ficam com labirintite; línguas ficam escorregadias na boca; palavras batem na parede da razão, escapam da boca; alguns cheiram a água que acompanha; terremoto se apresenta em lustres que balançam.
Desculpe se não me apresentei, meu nome é Baco.

Adamastor (Opus 16)

Você, assim como Adamastor, pode viver achando que sabe de tudo, porém o que os olhos vêem é apenas passado. Quer prova, dou-lhe a mais óbvia; o sol que tanto admiramos é a imagem do que ele foi há oito minutos. As estrelas são neste momento ilusões.
Quando jovem Adamastor sabia de tudo, pura convicção. Com o passar dos anos este gigante da razão descobre que viver não é tão simples assim. Descobre outras realidades, e ao longo dos anos, com perda e ganho se verá em quatro dimensões.
No caso de nosso amigo chega a certo ponto da vida, lá onde o orgulho faz a curva, que percebe que o mundo a sua volta é muito mais que três dimensões apenas. Muito mais do que os olhos podem ver. É aquele momento onde tem o choque emocional, e descobre que o tempo não tem passado ou futuro, é tudo presente. Alguns dizem que é amadurecimento, eu vos digo ser consciência do sentimento. A consciência que a condição humana é trágica.
Adamastor vive se queixando que quando jovem tudo era mais simples, que a vida parecia fluir, o tempo mero detalhe. Pobre amigo, ainda preso as masturbações. Está com lapso de tempo.
Existem muitos perdidos ao nosso redor, pessoas que ainda não conseguiram sentir a realidade em quatro dimensões. Viver nesta realidade é perceber que o espaço onde vivemos está totalmente ligado ao tempo. Tempo não tem ordem cronológica, é um contínuo. Tempo é sentimento. Lembranças ditas do passado fazem parte de um continuo espaço-tempo: viver. O passado e o futuro habitam o nosso presente, então é tudo sentimento no aqui e agora.
Muito físico? Sim, mas interpretar a realidade não é para fracos.
Senão não tiver coragem cai fora, corte os pulos, morra.