Noite quente de quinta-feira. Como de costume, observo. Feirinha chocha no Largo. A barraca do pastel. A barraca da bolacha. A barraca do salame. A barraca da fruta. A barraca da pamonha. Mas o Largo, ah, o Largo é o Largo. Mesmo em dia de feirinha chocha. Aquele jeitinho de Curitiba. Calçadas típicas. Gente de todo tipo. Baratas - dizem. A Fonte da Memória. O Relógio das Flores. Observadores e observados. Deliciosa penumbra iluminada. Beleza exótica, de expressivos contrastes. Um arcabouço histórico que se reinventa e é reinventado, pertence sempre ao seu tempo e a um outro.
Minha paixão por esse cantinho da esplêndida Curitiba é declarada. Mas há tempos, mais precisamente depois que passei a desenvolver um certo ar a la Caco Antibes, penso uma, duas, três vezes antes de encarar um passeio noturno por ali.
- Compra uma flor, tia.
- Compra um desse, moça (um treco feito de lata, que não serve pra nada).
- Me dá uma moeda, tia.
- Me dá um pastel, moça.
E o passeio, fosse cair na insistência dessas criaturas, viraria um verdadeiro treino para Madre Tereza de Calcutá. Definitivamente não dá. Pedem no sinaleiro. Pedem no estacionamento público. Pedem no ônibus. Pedem no Largo, meu Deus, como pedem no Largo!
Rezo para que nenhum deles me veja. Se pudesse, far-me-ia invisível. Assim, poderia curtir o Largo. Admirar o cavalo babão. Tomar uma cerveja gelada. Permanecer comigo mesma. Observar sem ser incomodada. Quem sabe comer um pastel.
Ah, o pastel. Culpado de tudo na dita noite quente de quinta-feira. Culpado pela minha repulsa. Culpado pela minha insensibilidade. Culpado pela minha dúvida de ter ou não um lugarzinho reservado no céu. Sim, porque depois do tratamento que dispensei aquela garota...
- Compra um pastel pra mim, tia?! (nem olhei, fingi que não era comigo).
Dois minutos depois, de posse de um pastel de carne já pela metade:
- Compra um pastel pra mim, tia?! (olhei de canto de olho e disse, delicada e raivosamente, um não).
Uma careta da garota. Eu ainda menos sensibilizada. Dois minutos depois, com a cara gordurosa de pastel e já saboreando um outro:
- Compra um pastel, tia. (ignoro) Compra uma Coca então?! (não).
Sai de fininho. Ouve alguns outros nãos por ali. Dois minutos depois, arrecada mais um pastelzinho. Acompanhado de uma Coca, é claro. E eis que, acreditem, novamente vem em minha direção, para ao meu lado, olha, olha, e:
- Compra um pastel, tia. (NÃOOOO!)
Uma careta assustadora. Sai reclamando.
Percebo-me, então, com o olhar e o pensamento fixos naquela construção barroca, essencialmente repleta de dualidades e incertezas: a histórica Igreja do Rosário. Sim, o Largo é o barroco por si só. Mas aquela Igreja... Aquela Igreja me transportou para um eu tenso, uma imagem de céu e inferno – em que sequer sei se acredito -, um conflito interior, uma religiosidade incerta.
Será que sofro de uma insensibilidade nata? Não, não pode ser. Lembro que já fui boazinha. No passado. Lá nos idos de... Bem, há tempos lembro que fui. Mas agora, é tanta gente pedindo. É tanta gente mal-agradecida – esses tempos, um se dizia faminto. Jogou o sanduíche, ali, bem na cara da moça solidária. Outro, muito necessitado – os seis filhos passando fome -, vendeu as latas de leite que recebera de um programa desses do governo. A droga era mais urgente. Outro...
Bem, é noite quente de quinta-feira. Como de costume, observo. Feirinha chocha no Largo. A barraca do pastel. A barraca da bolacha. A barraca do salame. A barraca...
Fabíola Rangel
Texto lindo! Quem escreveu?
ResponderExcluirBacaníssimo, Fabíola. Leve, gostoso de ler, divertido e bem colocado. Até quinta, Monica.
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