Blog dos participantes da Oficina Crônicas: entrevistas com o cotidiano do Setor de Literatura da Fundação Cultural de Curitiba - 2010.

quarta-feira, 24 de março de 2010

O folhetinista

Machado de Assis


Uma das plantas européas que difficilmente se tem aclimatado entre nós, é o folhetinista. Se é defeito de suas propriedades organicas, ou da incompatibilidade do clima, não o sei eu. Enuncio apenas a verdade. Entretanto, eu disse - difficilmente - o que suppõe algum caso de aclimatação séria. O que não estiver contido n'esta excepção, vê já o leitor que nasceu enfezado, e mesquinho de formas.
O folhetinista é originario da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto, como em cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande vehiculo do espirito moderno; fallo do jornal. Espalhado pelo mundo, o folhetinista tratou de accommodar a economia vital de sua organização ás conveniencias das atmospheras locaes. Se o tem conseguido por toda a parte, não é meu fim estudal-o ; cinjo-me ao nosso circulo apenas. Mas comecemos por definir a nova entidade litteraria.
O folhetim, disse eu em outra parte, e debaixo de outro pseudonymo, o folhetim nasceudo jornal, o folhetinista por consequencia do jornalista. Esta intima afinidade é que desenha as saliencias physionomicas na moderna creação. O folhetinista é a fusão admiravel do util e do futil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frivolo. Estes dous elementos, arredados como polos, hecterogeneos como agua e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal.
Effeito extranho é este, assim produzido pela afinidade assignalada entre o jornalista e o folhetinista. D'aquelle cahe sobre este a luz séria e vigorosa, a reflexão calma, a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, á leviandade, está tudo encarnado no folhetinista mesmo; o capital proprio.
O folhetinista, na sociedade, occupa o logar do colibri na esphera vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules succulentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a politica. Assim aquinhoado póde dizer-se que não ha entidade mais feliz n'este mundo, excepções feitas. Tem a sociedade deante de sua penna, o publico para lel-o, os ociosos para admiral-o, e a bas-bleus para applaudil-o. Todos o amam, todos o admiram, por que todos têm interesse de estar de bem com esse arauto amavel que levanta nas lojas do jornal, a sua acclamação de hebdomadaria.
Entretanto, apesar dessa attenção publica, apesar de todas as vantagens de sua posição, nem todos os dias são tecidos de ouro para os folhetinistas. Ha-os negros, com fios de bronze; á testa d'elles está o dia... adivinhem? o dia de escrever! Não parece? pois é verdade puríssima. Passam-se seculos nas horas que o folhetinista gasta á meza a construir a sua obra. Não é nada, é o calculo e o dever que vem pedir da abstracção e da liberdade um folhetim! Ora, quando ha materia e o espirito está disposto, a cousa passa-se bem. Mas quando, á falta de assumpto se une aquella morbidez moral, que se póde definir por um amor ao far niente, então é um supplicio...
Um supplicio, sim. Os olhos negros que saboream essas paginas coruscantes de lyrismo e de imagens, mal sabem ás vezes o que custa escrevel-as. Para alguns não procede este argumento; porque para alguns ha provimento de materia, certos livros a explorar, certos collegas a empobrecer...
Esta especie é uma aberração do verdadeiro folhetinista; excepções desmoralizadoras que nodoam as reputações legitimas. Escriptas, porém, as suas tiras de convenção, a primeira hora depois é consagrada ao prazer de desforrar-se de uma maçada que passou. N'aquella noite é facil encontral-o no primeiro theatro ou baile apparecido.
A tunica de Nessus cahiu-lhe dos hombros por septe dias. Como quasi todas as cousas d'este mundo o folhetinista degenera tambem. Alguma das entidades que possuem essa capa, esquecem-se de que o folhetim é um confeito litterario sem horizontes vastos, para fazer d'elle um canal de incenso ás reputações firmadas, e invectivas ás vocações em flor, e aspirações bem cabidas. Constituindo assim cardeal - diabo da curia litteraria, é inutil dizer que o bom senso e a razão friamente o condemnam e votam ao ostracismo moral, ausencia de applausos e de apoio.
Não é este o unico abuso que se dá. É costume de outros levantarem o folhetim como a chave de todos os corações, como a foice de todas as reputações indeleveis. E conseguem... Na apreciação do folhetinista pelo lado local temo talvez cahir em desagrado negando a affirmativa. Confesso apenas excepções. Em geral o folhetinista aqui é todo pariziense; torce-se a um estylo extranho, e esquece-se, nas suas divagações sobre o boulevard e café Tortoni, de que está sobre um mac-adam lamacento e com uma grossa tenda lyrica no meio de um deserto.
Alguns vão até Pariz estudar a parte physiologica dos collegas de lá; é inutil dizer que degeneraram no physico como no moral. Força é dizel-o: a cor nacional, em rarissimas excepções, tem tomado o folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar brazileiro é na verdade difficil.
Entretanto, como todas as difficuldades se aplanam, elle podia bem tomar mais cor local, mais feição americana. Faria assim menos mal á independencia do espirito nacional, tão preso a essas imitações, a esses arremedos, a esse suicidio de originalidade e iniciativa.


*Aquarellas, publicadas em O Espelho, publicadas entre 11 de setembro e 30 de outubro de 1859. In: Assis, Machado de. Chronicas - 1 volume (1859-1863). Rio de Janeiro: Jackson,1944.

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