Blog dos participantes da Oficina Crônicas: entrevistas com o cotidiano do Setor de Literatura da Fundação Cultural de Curitiba - 2010.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Calor, né?

Com duas palavras e três sílabas a conversa se inicia. O contato social mínimo necessário no tubo em que o ônibus demora a chegar. Ambos são os primeiros das filas da porta 1. Ela economizou tanta saliva ao ser amistosa:

"Pois é, né? Tá fazendo muito calor. De manhã, o tempinho fresco engana a gente, que sai com um casaco leve e um mini-guarda-chuva na mochila, mais peso pra carregar durante o dia. Chegamos no centro: aquele mormaço, nada de brisa pra refrescar. Mormaço, quentura. Quando morava em Porto Velho, a professora de biologia chamava aquilo de 'cozinhar um pudim de leite: no vapor'."

Ele olha pro lado, a fim de conferir a aceitação da anedota pela jovem de cabelos cacheados e sapatinhos vermelhos, quando se depara com um bigodudo trajando boné eleitoral e uniforme indecifrável. Continua, voltando-se pra frente.

"Estranho, né? Termos tanta palavra pra dizer a mesma coisa, digo. Um exemplo: essa semana fui a uma aula em que se discutia uma crônica do Machado. De Assis, digo. Lá pelas tantas uma palavra esquisita: canícula. A professora, astróloga, disse que era um estrela, mas uma aluna disse que era 'calor muito forte'. Tipo 'Que canícula, que inferno!', sabe? Coisa de gente velha, saber essas coisas inúteis."

Quando vira pro seu interlocutor, vê uma senhorinha de uns 75 anos, vestido florido, nariz empinado e bengala retirando-se pra fila da porta 2. Depois de um sonoro "Humpf". A mulher com bebê no colo se adianta um pouco na fila e ele segue.

"Pude comprovar minha teoria na aula de francês. Falávamos do aquecimento global, réchauffement, e do calor insuportável que fazia: canicule. Quem, logo de cara, associou com canícula? Não eu, que tinha aprendido a palavra dois dias antes, mas uma das três velhas da sala. Infelizmente, entre as diversas atividades que escolheram para mostrar o quanto são 'ativas' está o français. Logo depois a professora arrematou o assunto dizendo que a canicule matava muitos idosos franceses, o que levou os jovens do país a gritar 'Viva!' ao aquecimento global. O que achei de uma ironia refinada."

Finalmente, o ônibus biarticulado chega. E ele entra confortavelmente e sozinho pela porta 1.

 Tuca.

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