Blog dos participantes da Oficina Crônicas: entrevistas com o cotidiano do Setor de Literatura da Fundação Cultural de Curitiba - 2010.

terça-feira, 16 de março de 2010

O Cavalo e o Vento

Certo vento soprava mais uma vez por aquele centro histórico. Aquele Largo reinventado e que ressurge em todas as épocas; entretanto, uma corrente de ar formada por um jovem sopro de final de verão mostrou-lhe algo. Pela primeira vez, notara que a cabeça do equino de bronze jazia olhando para a igreja em busca de perdão. A sua e àquela volta sempre os músicos joviais alimentando-se de êxtase líquido, de estupor engarrafado. Almas que vivem sua autenticidade bem no centro do coração de pedra do sistema capital. Mesmo o coração de pedra possuía animação própria. E o vento sorriu encantado.

Ele girava e o céu retorcia em imagens de seu passado de experiências naquele mesmo lugarzinho. Era um menino em anos liquidados e tinha expectativas românticas, parecia um raio que se perdeu numa tormenta escura. Os bares abertos traziam novos clientes; histórias, as mesmas. Amava a troca e sonhara com mudanças. Observando ao redor, já com a luz das estrelas desceu a rua até a padaria onde poderia assoprar um café.

O glutão se alimentava como faminto animal na padaria da alameda. Arrotou bem na sua cara, pobre vento passageiro. Sentiu o refluxo gástrico subindo com a leve dor eclodindo esofagite num arroto seco. No centro a mulher de cabeça fina, sugada, falava ao telefone sobre o filho de dezenove anos que tomava rumo elogiável e beirava a independência. Logo sairia de casa, com orgulho. Ela nunca fizera nada diferente de trabalhar para o sustento da prole. No fundo o casal de garotos de vestes coloridas e estampas esculpiam sorrisos regozijando de suas jovens experiências de dias felizes e de shows e da promessa de alegria eterna.

“Deus....mil vezes aqueles mocinhos babões. Cavalo de pedra, soprou, é hora de acordar”.

Decidido, ele, que não era vento nobre nem fazia milagre, inspirou fundo e com grande impulso implorou por Zéfiro. Eis que um vento muito maior surgiu glorioso e de ar imponente. Era um irmão de titãs, era Zéfiro. Num ágil vôo chegou até a cabeça do cavalo, e o vento, simplório, assistiu estarrecido ao improvável. Zéfiro atravessou a estátua e num sopro deu vida nova àquela cabeça.

A arte de viver com pouco pode ser menosprezada, mas é imortal, pois sempre há quem a admire, sempre um desbravador em busca das alturas libertará o espírito após o encontro da arte pura de imortais. Largar a razão e enlouquecer. Há de se perceber essa possibilidade, sem insensatez e sem razão, um extravasar de emoções essenciais para o espírito se manifestar. O vento observou de canto e se viu como mais um personagem que a qualquer momento tomaria o papel principal.

Daniel S Trouche

2 comentários:

  1. Curti muito teu texto. Uma construção que usaste no texto merece um destaque em especial: "Pela primeira vez, notara que a cabeça do equino de bronze jazia olhando para a igreja em busca de perdão." Digo isto porque em sala, enquanto vários colegas divagavam sobre a estátua do cavalo, minha vontade era dar vida a ele. E então fiquei a imaginar distantas maneiras de fazer isto. E este teu olhar, aproveitando a posição da igreja e da estátua, para trazer a ideia da busca de perdão, foi muito genial. Parabéns.

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  2. O fato de dar vida ao cavalo remete a minha ideia inicial do nome do blog.Pq as histórias seriam contadas naquele espaço onde ele fica(o cavalo) e é como se ele soubesse de tudo.E isso você conseguiu muito bem.Gostei muito da sentença que o André comentou acima:
    "Pela primeira vez, notara que a cabeça do equino de bronze jazia olhando para a igreja em busca de perdão."
    Abrass

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