Blog dos participantes da Oficina Crônicas: entrevistas com o cotidiano do Setor de Literatura da Fundação Cultural de Curitiba - 2010.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Com a bênção de São Cristóvão.

Não que eu me preocupe demasiadamente com as conversas alheias ou sofra de uma grave sociofobia, mas a idéia de trafegar em um transporte coletivo me causa arrepios: pensar que serei obrigada a ouvir ridículas e absurdas tagarelices provenientes de todos os lados ou, pior, muito pior, pensar que alguém pode entender que estou extremamente solitária na companhia de meu livro - nunca saio sem levar um - e resolver trocar palavrinhas sem nexo comigo.
Eis que hoje não houve escapatória e fui obrigada a encarar um biarticulado daqueles um tanto lotados. Logo de início percebi que não seria uma tarefa fácil, mas tentei manter o humor. O primeiro ônibus a chegar lotou, lotou de uma maneira que se resolvesse entrar nele certamente viraria uma sardinha enlatada. Então resolvi, calmamente, sem qualquer indignação, esperar pelo próximo carro. Em pouquíssimos minutos, mas suficientes para que a plataforma de embarque ficasse repleta de indivíduos pouco educados, apressados e potenciais tagarelas sem assunto, surge o que todos acreditavam ser o próximo vermelhão. RECOLHE 14 HORAS, dizia a plaqueta grudada no pára-brisa do ônibus, que parou fora da plataforma de embarque.
Naquele momento, 14 horas; a plaqueta era clara; o motorista parou fora do local onde habitualmente se embarca. Mas não, isso não foi o suficiente para que aqueles indivíduos pouco educados, apressados e potenciais tagarelas sem assunto percebessem que aquele não era o ônibus que há horas esperavam. Fiquei quietinha à espera do próximo. Mas o bando movimentou-se para lá, em direção ao ônibus, a postos como em um campo de batalha. A porta de entrada obviamente não se abriu. E...foi como se mundo estivesse desmoronando para aqueles indivíduos que, diante de suas espertezas, sequer perceberam que logo atrás estava o tão esperado transporte. Reclamações, xingamentos ao motorista, comentários sem pé nem cabeça... Meu São Cristóvão!!!
Após esse rápido episódio, já aconchegada em um banco individual, para evitar qualquer companhia que não fosse Eça de Queirós, percebo uma senhora suspeita adentrando ao ônibus. E eis que minha suspeita imediatamente se confirma: ela era mesmo uma tagarela sem assunto. E, durante um bom tempo de minha viagem, seus diálogos pareciam misturar-se com os de Padre Amaro. Era impossível não ter ouvidos e mente invadidos pelas palavras incessantes da agradável senhorinha.
Soube que hoje ela tirou o dia para pisar sem querer nos pés das pessoas, mas sorte que ela pisa bem devagarzinho. Soube que Amaro era um menino muito mentiroso. Soube que hoje ela tinha andado em 16 ônibus e ainda pegaria mais 08, e olha que a maioria deles eram desses de 04 portas e não 05. Soube que, por decisão da Marquesa, Amaro iria para o seminário aos 15 anos. Soube que a tagarela foi várias vezes ao Hospital de Olhos, sofre de dor nas pernas, mas não são varizes como o caso da mulher que sentava ao seu lado: é artrose. Porque depois dos 40... Soube que no seminário Padre Amaro tinha fantasias com a imagem da Virgem. Soube que não guardar dieta de parto faz a mulher ficar louca. Soube que o pároco, no confessionário, nem tocava no assunto das tais fantasias. Soube que a tal da loucura é facinho de curar: é só ter outro filho e se resguardar direitinho os 40 dias...Soube que se eu não me incomodasse tanto com as conversas alheias... Se eu não fosse tão anti-social com os pobres desconhecidos... Tudo seria bem mais simples.

Fabíola Rangel

Um comentário:

  1. De vez em quando acontece uma dessas, mas com semi-conhecidos, sabe? Aquele tipo de pessoa que você sabe o nome, mas você não tem assunto pra conversar durante uma meia hora inteira? Então... Daí você nem lê, nem consegue realmente falar algo além de obviedades.

    Gostei do texto, só acho que facilitaria um pouco a leitura se você o dividisse em parágrafos, fica mais difícil de se perder em alguma frase. =)

    Beijo

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