Memórias
A neta assiste televisão. São sete e meia da manhã. Ela está despreocupada no sofá. Sua avó desce a escada. Ela está pasma. A neta nem lhe dá bola. Mas a avó se aproxima.
- O que você está fazendo aí?
- Nada.
- E a missa?
- Esqueci completamente.
O sofá fica vazio. As pantufas são abandonadas. A escada é golpeada rapidamente. Os degraus são tocados suavemente. O armário abre-se. Uma calça jeans, uma camiseta e uma sapatilha são arrancadas das gavetas. O quarto recebe mais um corpo. O pijama é despido. A cama é sentada. As roupas são vestidas. O guarda-chuva é pegado. A escada é novamente utilizada. Aos ponta-pés. Ao balé. E o guarda-roupa, no quarto revirado, fica aberto.
Um pouco mais tarde, enquanto o carro é deslocado, lembra-se:
- Filhinha, você tirou o frango da geladeira?
- Era para tirar, vó?
- Eu não te avisei?
- Será que a Lourdes pode fazer isso?
- Você está com o celular aí?
- Alô?
- Lourdes, querida, você pode tirar o frango para o almoço?
- É pra fritar, dona?
Na igreja, a missa não anda. O sono geral toma conta. E começa a chover. O sermão parece para surdos. Mas a chuva bate o ponto de saída. O sol entra no seu turno. É o momento da comunhão. Centenas de preces são entoadas.
- Ides em paz e recordes de Deus, Nosso Senhor.
De volta à casa, o frango está bem frito, as três mulheres ocupam a mesa e o almoço está servido. Um garfo é tombado sobre o prato. A avó abaixa a cabeça. Ouve-se o choro.
- Tudo bem, vovó?
- Dona, se lembrou do sermão?
- Não, minhas queridas, deixei o guarda-chuva na paróquia.
________
Manolo Ramires
www.twitter.com/manoloramires
Maravilhoso o jogo feito no terceiro parágrafo!
ResponderExcluirPercebe-se nitidamente a diferença das ações das personagens, e a diferenaça das idades.
Genial!
Muito interessante esse manipular das palavras na tecitura de retratos do cotidiano. Marca presente em diversos dos teus textos.
ResponderExcluirMuito bom mesmo.
Amei...
ResponderExcluira ação descrita através dos objetos modificados pelo ação dos personagens...
o guarda-chuva esquecido...
objeto que se supõe então...
guardar muitas histórias, lembranças, tristezas...
de quem era o guarda-chuva?
me fez lembrar do guarda-chuva de meu pai... que guardo com carinho...
com uma lembrança...tão forte!!!
___________________________________________
Uma pergunta: Porque na boca do cavalo?
a cada historia que escrevo,
ResponderExcluira cada historia que eu leio,
novas memórias...
novas lembranças...
não podia deixar de escrever
sobre o guarda chuva do meu pai
agradeço
ao guarda-chuva esquecido na igreja
e a todo o resto que ele me trouxe!
Que texto incrível esse seu!!!