Blog dos participantes da Oficina Crônicas: entrevistas com o cotidiano do Setor de Literatura da Fundação Cultural de Curitiba - 2010.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Memórias


Memórias
(À minha mãe)
blogINparana



A neta assiste televisão. São sete e meia da manhã. Ela está despreocupada no sofá. Sua avó desce a escada. Ela está pasma. A neta nem lhe dá bola. Mas a avó se aproxima.

- O que você está fazendo aí?
- Nada.
- E a missa?
- Esqueci completamente.

O sofá fica vazio. As pantufas são abandonadas. A escada é golpeada rapidamente. Os degraus são tocados suavemente. O armário abre-se. Uma calça jeans, uma camiseta e uma sapatilha são arrancadas das gavetas. O quarto recebe mais um corpo. O pijama é despido. A cama é sentada. As roupas são vestidas. O guarda-chuva é pegado. A escada é novamente utilizada. Aos ponta-pés. Ao balé. E o guarda-roupa, no quarto revirado, fica aberto.

Um pouco mais tarde, enquanto o carro é deslocado, lembra-se:

- Filhinha, você tirou o frango da geladeira?
- Era para tirar, vó?
- Eu não te avisei?
- Será que a Lourdes pode fazer isso?
- Você está com o celular aí?
- Alô?
- Lourdes, querida, você pode tirar o frango para o almoço?
- É pra fritar, dona?

Na igreja, a missa não anda. O sono geral toma conta. E começa a chover. O sermão parece para surdos. Mas a chuva bate o ponto de saída. O sol entra no seu turno. É o momento da comunhão. Centenas de preces são entoadas.

- Ides em paz e recordes de Deus, Nosso Senhor.

De volta à casa, o frango está bem frito, as três mulheres ocupam a mesa e o almoço está servido. Um garfo é tombado sobre o prato. A avó abaixa a cabeça. Ouve-se o choro.

- Tudo bem, vovó?
- Dona, se lembrou do sermão?
- Não, minhas queridas, deixei o guarda-chuva na paróquia.

________
Manolo Ramires
www.twitter.com/manoloramires

4 comentários:

  1. Maravilhoso o jogo feito no terceiro parágrafo!
    Percebe-se nitidamente a diferença das ações das personagens, e a diferenaça das idades.
    Genial!

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  2. Muito interessante esse manipular das palavras na tecitura de retratos do cotidiano. Marca presente em diversos dos teus textos.

    Muito bom mesmo.

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  3. Amei...
    a ação descrita através dos objetos modificados pelo ação dos personagens...

    o guarda-chuva esquecido...
    objeto que se supõe então...
    guardar muitas histórias, lembranças, tristezas...

    de quem era o guarda-chuva?
    me fez lembrar do guarda-chuva de meu pai... que guardo com carinho...
    com uma lembrança...tão forte!!!

    ___________________________________________
    Uma pergunta: Porque na boca do cavalo?

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  4. a cada historia que escrevo,
    a cada historia que eu leio,
    novas memórias...
    novas lembranças...

    não podia deixar de escrever
    sobre o guarda chuva do meu pai
    agradeço
    ao guarda-chuva esquecido na igreja
    e a todo o resto que ele me trouxe!

    Que texto incrível esse seu!!!

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