Blog dos participantes da Oficina Crônicas: entrevistas com o cotidiano do Setor de Literatura da Fundação Cultural de Curitiba - 2010.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Deve ser culpa do Bolsa Família.

Tarde dessas, aguardava o vermelhão em um tubo da região central, quando, como de costume, percebi-me interessada por mais uma daquelas conversas típicas de transporte coletivo. Parece que tenho prazer em me entreter com o ridículo, com o irritante, com o fútil, com o banal. Sim, porque eu odeio as tais conversas típicas, mas sempre me pego atenta a uma delas. Não, não. Acho que o prazer está em refletir sobre elas, comentar com os outros, descobrir o que pensam a respeito e criticar, criticar, criticar. Eis o meu verdadeiro prazer. Confesso, sem rubras faces. Mas, vamos ao fato!
A personagem: mocinha magrela, vinte e alguma coisinha – se tanto -, aliança dourada - mas já sem brilho - na mão esquerda, bolsa gasta a tiracolo, jeans e camiseta, cabelo por fazer.
A situação: uma e pouco da tarde, terça-feira quente na fria Curitiba, a mocinha falando ao celular. Do outro lado – provavelmente – o moço com o qual trocou alianças sem brilho.
Agora, sim, a conversa:
- Ah, não, amor, já tô indo pra casa. Cansei de ficar no salão...
(ouve por alguns segundos)
- Ah, pouco movimento, cliente tem, mas cansa ficar esperando entre uma e outra. Não vale a pena! A Vânia também disse que logo vai...
(ouve por alguns segundos)
- Mas a gente tem aquele dinheiro que está comigo, amor... (ouve). Eu já te falei: seis reais.
Arregalo os olhos – acho que até demonstrei, vergonhosamente, o interesse na conversa alheia, mas...
(ouve por alguns segundos)
- Claro que eu almocei, amor, isso você sabe que eu não deixo de fazer... Comi um salgado daqueles com vina e tomei um refrigerante. Bem capaz que eu não ia almoçar, da minha saúde eu cuido.
Agora sim, meus olhos quase saltaram das órbitas. Preocupei-me um pouco por ter denunciado minha falta de educação. Mas logo a dor na consciência cedeu lugar ao meu senso crítico, excessivamente crítico. Se ela estava falando alto, ali, no tubo do vermelhão, era porque não se incomodava que a ouvissem.
- Blá, blá, blá...
O que me questiono é o que leva uma jovem aparentemente saudável, pobre, provavelmente despreparada para o mercado de trabalho - e para vida, diga-se de passagem -, sair do serviço em uma terça-feira ensolarada, almoçar um salgado com vina – e acreditar que está se cuidando -, ter coragem de contar uma coisa dessas para o marido e ainda achar que está cheia da grana – SEISSSS REAIS, para dividir com o moço... Emprego ela tem, só não quer trabalhar. Deve ser culpa do Bolsa Família...
Bem que eu poderia ter me poupado da indignação, continuado na companhia de Maria Gadu, ao invés de manter os fones nos ouvidos – tentando disfarçar – e a música pausada para ouvir melhor a conversa da mocinha. O que me contenta é que a situação me rendeu o prazer de relatá-la um milhão de vezes, ansiosa pela reação das pessoas, louca para criticar a mocinha e, consequentemente, todos aqueles que como ela são um peso social mais por opção que necessariamente por fatalidade.
Já me disseram que estou parecendo Caco Antibes...
O pior é que odeio que prestem atenção quando falo ao telefone. Humm...o que será que contam de mim por aí? Sai de baixo!

Um comentário:

  1. Ainda bem que ela tem um salgado com vina para o almoço. Seu compamheiro lhe presenteou com uma aliança de ouro falso, e supostamente preocupa-se com ela, perguntando se almoçou. Ela por sua vez, divide toda sua fortuna de seis reais com ele, seu companheiro com o qual percebemos uma cumplicidade admirável entre eles.
    Estamos num país em que as diferenças sociais são gritantes e a violencia contra a mulher cresce a cada dia. Ela pelo jeito não apanha.
    Sorte da mocinha de sua história de não fazer ainda parte do grupo do lixão. Espero que nunca faça.As exigencias do mercado de trablho são cada vez mais rigorosas.A educação mais precária. E alguns sãs acenados, acalentados, enganados com a solução ilusóris da bolsa familia.Ainda bem que sua personagem trabalhava.Do jeitão dela, mas trabalhva.
    Bonito seu texto. Me fez refletir...

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