Blog dos participantes da Oficina Crônicas: entrevistas com o cotidiano do Setor de Literatura da Fundação Cultural de Curitiba - 2010.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Cacau dourado lia

Cacau dourado lia

Era cedo da tarde. Sei disto, pois acabara de retornar do almoço. Após saborear uma quase saborosa refeição vegetariana. Pois é. Tenho me dedicado aos pratos leves. Devido à orientação de meu cardiologista, tenho me obrigado a ser comedido nas refeições. Nada de carne gorda. Vermelha. Frituras. Evitar doces. Sobretudo o chocolate. O interessante nesta história é que nunca fui aficcionado por tais guloseimas. Mas o colesterol está alto. Fazer o que? Mudar a dieta. Mas, não sei se feliz ou infelizmente, já estou até me acostumando. O fato é que estava, como de costume, sentado diante de minha mesa, na repartição. Enquanto organizava as atividades a serem executadas no turno de trabalho que se iniciava, analisando, separando, classificando, selecionando cada uma das tarefas, colegas conversam animadamente. Alheio aquele burburinho de vozes, pacientemente sigo meu trabalho.

De repente, daquele incompreensível mosaico de vozes e sons sobrepostos, concorrentes entre si e com a incansável campainha do telefone, com as buzinas dos automóveis, na via pública, com o canto nada ritmado dos celulares, chega a meus ouvidos, com a clareza e nitidez do violino que emerge solitário após o silêncio de uma breve pausa da orquestra, aquelas três palavras. Soltas. Independentes. Casualmente derramadas uma após a outra. Conduzindo-me em divagações várias. Bizarras. Para os que seguiam entusiasticamente a conversa, tais palavras não causaram qualquer furor. Não representaram qualquer possibilidade de devaneios. Penso, mesmo, que seus cérebros decodificaram-nas como uma sentença legal. Um artigo de lei. Talvez como as indicações de uma bula de remédio. Ou, ainda, como as especificações técnicas de um aparelho de som.

- “Cacau dourado lia”.

De imediato, sem que tivesse a menor possibilidade de controlar o ritmo ou o rumo de meus pensamentos, vi-me sentado confortavelmente à beira mar. Sol escaldante. Calor brasileiro. Cerveja gelada no copo. O ir e vir de pernas e braços e vultos e sombras na areia. Meninas bonitas. Jovens atletas. O casal de velhinhos. A mãe e o filho colhendo conchinhas. Um gordo fanfarrão mastigando um daqueles espetinhos. E a uns poucos metros dali, sentado numa cadeira marrom, sob um guarda-sol amarelo, estava ele. O senhor Cacau Dourado que lia tranquilamente um volumoso livro. Alheio ao sol. Ao mar. Ao vento. Às pernas e vultos. Intrigado, fico a analisar aquela distinta, porém nada convencional criatura. O que estaria lendo? Talvez estivesse debruçado sobre a obra de Jorge Amado, especialmente escrita em sua homenagem. Talvez não. Quem sabe seu gosto fosse mais erudito, voltado aos grandes filósofos como Nietzsche, Kant, Kierkegaard. Ou poderia estar imerso no apaixonante universo da música brasileira, folheando paginas com obras de Aldir Blanc.

E eis que me percebo de volta à minha mesa. Sugado abruptamente para a crua realidade. Novamente aprisionado naquele irritante burburinho de vozes e sons desencontrados. Aguço minha audição a fim de pescar um sentido qualquer naquela conversa de doidos. Percebo, então, que as colegas falavam sobre o paredão do programa televisivo Big Brother que havia sido formado por três dos participantes, chamados respectivamente de Cacau, Dourado e Lia. Assim, mesmo. Nesta sequência. Sem qualquer imaginação ou criatividade. Sem devaneios. Tão distante das pernas bonitas de vultos de atletas moças ou não...

Por André Luís Fernandes Dutra – em 02/03/2010.

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